Chave de casa: nosce te ipsum

Chave de casa: nosce te ipsum ou por que razão escolher a alegoria.

***

Sem me levantar, pego a caixinha na mesa-de-cabeceira. Dentro dela, em meio a pó, bilhetes velhos, moedas e brincos, descansa a chave que ganhei do meu avô. Tome, ele disse, essa é a chave da casa onde morei na Turquia. Olhei-o com expressão de desentendimento. Agora, deitada na cama com a chave nas mãos, sozinha, continuo sem entender. E o que vou fazer com ela?

Tatiana Salem Levy,  Chave de casa, pp. 14-15.

Recuperado daqui e daqui, e daqui.

“Descendente de judeus turcos imigrados no Brasil, Tatiana Salém Levy nasceu em Lisboa em 1979, quando, em tempo de ditadura e repressão, a família estava exilada em Portugal. Com nove meses foi para o Rio de Janeiro. O contacto com as histórias da família, proporcionando narrativas personalizadas e próximas no âmbito dos temas da emigração e do exílio, acabou por se refletir na sua produção ficcional. Por outro lado, toda a sua formação académica foi feita no âmbito dos estudos literários, desde a licenciatura ao pós-doutoramento, evidenciando um “saber fazer” e um “saber ler” capazes de proporcionar instrumentos discursivos ficcionais, mas que sobretudo ofereceram possibilidades de opção no momento da escrita literária. Para além dos dois romances publicados até hoje, de qualidade reconhecida, A chave de casa (2007) e Dois rios (2012), e da produção de contos, publicados em várias antologias e publicações, a sua lista de obras conta ainda com a publicação de Curupira Pirapora, em 2012, catalogado como literatura infanto-juvenil, com ilustrações de Vera Tavares. Esta conjugação das memórias, da experiência pessoal e da escrita é fundamental, não se tratando apenas de factos biográficos e de produção académica e literária. Com efeito, Tatiana Salem Levy incluiu frequentemente a sua experiência biográfica e literária nos universos narrativos que produziu. Estes dois aspetos são considerados por Tatiana Salem Levy em Do diário à ficção: um projeto de tese / romance, trabalho em que explica a génese do seu primeiro romance.

Um outro aspeto recorrente tem a ver com um procedimento evidente na escolha do título dos dois romances considerados, a “chave” e os “dois rios”. O título de ambas as obras recorre à designação de uma realidade física (coisa, objeto ou particularidade da natureza) para falar de realidades humanas, emocionais e intelectuais. São elementos físicos que estabelecem relações de similitude, que o texto se encarrega de construir e acentuar, com os conceitos que estruturam cada uma das narrativas. E a este salto entre sentidos, literal e fingido, a esta transposição de sentido chama-se propriamente alegoria. A presença da alegoria, construída a partir do título sugestivo A chave de casa, será o ponto de vista adotado para esta leitura do primeiro romance de Tatiana Salem Levy (Augusto 2010). Desta forma, ter-se á em conta a forma como a “chave” se torna metáfora particular de um processo de reidentificação em curso por parte do narrador auto diegético, ao mesmo tempo “narradora” e “protagonista”, voz organizadora de todo o discurso ficcional, ao mesmo tempo que se torna “lição” e “demanda” de realização pessoal.

Este ponto de vista implica uma leitura ficcional temática, definida na sua Anatomia da crítica por Northrop Frye (Frye s.d.) a partir da Poética de Aristóteles (2000), e que tem como ponto central a dianoia, ou seja, a ideia ou o pensamento poético que o leitor obtém do escritor. A esta dianoia Frye fez corresponder o conceito de “tema”, fazendo com que a literatura capaz de manifestar um interesse conceptual possa ser chamada de “temática”. Assim, quando para além do desenrolar do enredo, o leitor se interroga também sobre o “sentido” da história, ele está a considerar o aspeto temático para além do aspeto ficcional Desta forma, a leitura e o comentário instituem-se como procedimento alegórico, apesar de considerado num grau mínimo, ou, como lhe chama Paul de Man, allegory of reading (Man 1990), capaz de ver na leitura, através de um processo sistemática de desconstrução, o modo de resolver as contradições e elipses engendradas pelo texto.

É esta desconstrução, capaz de encontrar, de engendrar quando necessário, um sentido para o romance, tendo em conta a primeira pista evidente, “a chave de casa”, que se pretende levar a cabo. De qualquer forma, é difícil falar de uma obra complexa como esta, feita mais de sugestões do que de factos, privilegiando a memória que brota de uma construção fragmentada, que obrigada a uma leitura de lápis em riste. Como comentar A chave de casa sem cair na incompletude? Como condensar sentido e linhas de leitura? Tornou-se necessário fazer opções: e optei pela alegoria, campo rico e complexo da leitura literária; optei também por sugerir pistas de leitura, e optei por centrar esta apresentação no primeiro romance, A chave de casa, tendo em conta, que procedimentos semelhantes se repetem em Dois rios, publicado cinco anos depois.”

capa A chave de casa alegoria na produção ficcional de Tatiana Salem Levy

Bibliografia referida no excerto:

Levy, Tatiana Salem (2007). A chave de casa, Lisboa, Cotovia.
Levy, Tatiana Salem (2012). Dois Rios, Lisboa, Tinta da China.
Levy, Tatiana Salem. Do diário à ficção: um projeto de tese / romance, disponível em www.avatar.ime.uerj.br.
Augusto, Sara (2010). A alegoria na ficção romanesca do maneirismo e do barroco, Lisboa, FCG / FCT.
Frye, Northrop (s.d.) [1957] Anatomia da crítica, trad. de Péricles Eugênio da Silva Ramos, São Paulo, Cultrix.
Aristóteles (2000). Poética, trad. Eudoro de Sousa, Lisboa, INCM.
Man, Paul de (1990) [1979]. Alegorías de la lectura: Lenguaje figurado en Rousseau, Nietzsche, Rilke y Proust, Barcelona, Editorial Lumen.

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