Organizado por Osvaldo Silvestre e Ricardo Namora no âmbito do Centro de Literatura Portuguesa, o colóquio Primeiras Teses já ganhou importância no panorama dos Estudos Literários e das pós-graduações das universidades portuguesas. Este ano houve uma apresentação que sobretudo me interessou, a de Maria Inês Nemésio, Das Novelas Exemplares às Exemplares Novelas: os paratextos da ficção em prosa no século XVII. Maria Inês não só apresentou o trabalho que defendeu na Universidade do Porto, como apresentou os parâmetros de orientação da sua futura tese de doutoramento. Fundamental.
Para quem está dentro do assunto (ou pretenda estar), o trabalho desenvolvido por Maria Inês é da maior importância no quadro da legitimação da ficção romanesca levada a cabo no período barroco. Entre prólogos, dedicatórias, censuras do Paço e da Inquisição, desenha-se uma estratégia que transforma o entretenimento e a aventura em exemplo e edificação moral. Todo este percurso nos é explicado, de forma devidamente contextualizada.
O nome deste blogue foi retirado de uma das novelas do Padre Mateus Ribeiro, o Alívio de tristes. Vou retomá-la, transcrevendo o Prólogo da edição em dois volumes e seis partes, de 1754 (tal como consta de A Alegoria na ficção romanesca do Maneirismo e do Barroco, 201: 301-302), que será da responsabilidade do editor Luis de Moraes e Castro, e que muito deve ter contribuído para as reflexões e conclusões sobre a relação estabelecida em Das Novelas Exemplares às Exemplares Novelas de Maria Inês Nemésio.

“Sobre o primeiro Tomo do Alivio de Tristes, que consta de tres partes emendadas de muitos erros que a ignorancia deixou passar, sem atender que em muitas partes não atavam as orações e ficavam mal soantes as palavras; com este cuidado me resolvi a dividi-lo em dois Tomos porque me pareceu que causaria tedio um volume tão grande, suposto que pela eloquencia do Autor sempre os curiosos estimariam esta obra, assim como todos os seus escritos agradaram, a quem leu a Roda da Fortuna, Retiro de Cuidados, e a Historia de N. Senhora do Livramento da Azoeira, donde foi Paroco muitos anos. Nesta lição se deu o Autor a conhecer pela afluencia de palavras tão elegantes com que teceu esta e as mais Historias que bem se deixa ver o grande do seu engenho. Faremos uma breve defença para os que censuram as suas obras, mostrando que muitos Eclesiasticos se empregaram neste honesto divertimento.
Depois de dar noticia dos escritos do Autor destas obras pareceu que falta só uma breve Apologia do assunto que ele escolheu, para a maior parte dela, pois não faltam censores presumidos de austeros que condenem a um Eclesiastico compor Novelas. Quando a disciplina da Igreja era muito mais rigida, foi condenado Heliodoro Bispo de Tricca em Tessalia a largar o seu Bispado, porque não quis suprimir o engenhoso livro das Novelas dos amores de Teagenes e Schariclea, ou declarar que não era Autor desta obra, porém este rigor dos Bispos de Tracia, que o depozeram, nem foi seguido, nem é tão certo, que alguns Autores o não duvidem, e foi este o modelo que as Historias fabulosas deste genero depois imitaram. O eruditissimo Pedro Daniel Huet, Bispo de Abranches, e segundo Mestre do Delfim escreveu em Latim e em Frances um doutissimo Tratado da origem e bom uso das novelas, e quando estas são como devem ser exemplares pouco importa, que um Eclesiastico debaixo de uma ficção engenhosa mostre o premio e estimação da virtude, o castigo e abominação do vicio. Nonio, que o Cardial Baronio entende ser o mesmo Santo deste nome, escreveu o largo Poema Heroico da vida de Baco intitulado Dionisiaca, e este e outros muitos Santos e Bispos nos Poemas trataram em verso as mesmas materias que os Autores das Novelas escreveram em Prosa, donde se precebem melhor os documentos e se não introduzem as fabulas gentilicas. Foram Eclesiasticos D. Pedro Calderon, D. Antonio de Soliz, D. Agostin Moreto, e não perderam a estimação, nem os premios por serem escritores de Comedias. O livro justa e universalmente estimado da Novela de Telemaco tem por autor o grande Fenelon Arcebispo de Cambrai, e foi composto para instrução do Duque de Borgonha de quem era Mestre, e saiu este real discipulo dignissimo de suceder na Coroa de França, em que não chegou a reinar. Muito pudera argumentar esta defença, se a boa aceitação, que os livros, que torno a imprimir tiveram de todos, os não justificasse ao seu Autor, que na Primeira Parte, mostra não ser vulgar a sua erudição, e em todas, que a virtude da Eutrapelia, que o Doutor Angelico louva e a Filosofia aprova, é precisa para que os tristes tenham algum alivio, os cuidados algum retiro, e a desigualdade da roda da fortuna, alguma consolação de que tanto necessitam os benemeritos e felices. Vale.”
Documentos:
Augusto, Sara. A Alegoria na ficção romanesca do Maneirismo e do Barroco. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / FCT, 2010.
Freitas, César Augusto Martins de. A novela portuguesa no século XVII: o caso Mateus Ribeiro. Porto, 2006.
Nemésio, Maria Inês de Andrade e Castro Monjardino. Das Novelas Exemplares às Exemplares Novelas: os paratextos da ficção em prosa no século XVII. Porto, 2010.
Ribeiro, Mateus. Alivio de Tristes e consolação de queixosos. Seis Partes divididas em dous volumes. Lisboa, por José da Silva da Natividade, 1754.
Uma opinião sobre “Paratextos e Primeiras Teses”