Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste
o coração?»
José Tolentino Mendonça, A que distância deixaste o coração
Passaram dois anos. Tenho andado mais por veredas e caminhos sombrios que por largas avenidas luminosas, mas da sombra vem a luz e a criação, mesmo que hesitante e lentamente.
Hoje, neste preciso momento, olho em volta e a paisagem parece não ter mudado. O que é curioso… uma biblioteca, estantes envidraçadas, uma longa mesa retangular… mas se aguçar os olhos vejo nomes nas lombadas e distingo Eduardo Gageiro, Michael Langford, Testino, Doisneau, Alfredo Cunha, Sebastião Salgado… e se me levantasse tantos outros nomes viriam aqui.
Mas a vida acontece lá fora. Um dia destes, de manhã, encontrei esta gaivota. Juntou-se com um grupo de pombas e com dificuldade disputava com elas restos de comida, embrulhada em jornal, que a dona do café atirava para a rua. Não se afastaram nem um pouco quando me aproximei. Fui fotografando. Já tinha reparado na falta de equilíbrio da gaivota, mas só quando olhei pela objetiva, aproximei o olhar e vi, é que percebi porquê. Enchi-me de compaixão. Não consigo editar as fotografias sem voltar a senti-la. Tenho procurado pela gaivota mas nunca mais a vi. Talvez um dia volte a encontrá-la, com aquelas asas imensas e luminosas por entre o cinzento das pombas e as pedras molhadas da calçada, com aqueles olhos que me fitaram, por entre medo e pena.
Dois anos. Para ti, gaivota, que trazes o coração nas asas.