Sabe-me muito bem voltar à literatura barroca, sobretudo à alegoria, mais ainda nos nossos tempos, e verificar como os avisos de escritoras como Soror Maria do Céu se mantêm tão atuais. Não admira, podemos pensar: é a condição humana que não muda.
Em Obras Várias e Admiráveis, desta que foi por duas vezes abadessa do Convento da Esperança, em Lisboa, publicadas por Manuel Fernandes da Costa em 1735, o primeiro documento contém vinte e quatro metáforas, sob o título Metaforas das Flores mostradas em documentos mui proveitosos. Apresentam a mesma estrutura: o apólogo e a sua respetiva moralização. Deixo a primeira metáfora, cuja leitura me deixou um sorriso pela semelhança com algumas almas com que me cruzo. Não deixo de gostar delas, destas rosas de intenso brilho e perfume, e gosto de tê-las por perto. Talvez as ame mais ainda pela sua fragilidade. Falo das almas.
METÁFORA I.
Estava a Rosa, vestida de púrpura, em trono de esmeralda, com guarda de espinhos, lisonjas de Zéfiros, músicas de aves, quando chegaram as flores a pedir-lhe audiência. Concedida, lhe deram um memorial por ação do Cravo parente seu. Sua petição era que se servisse sua Magestade Rosalina de repartir por todas as flores de sua vassalagem os títulos que enobrecem uma corte, pois assim dava a elas o lustre que se lhes devia e à sua coroa o esmalte que lhe faltava. Ouviu a Rosa o memorial e pronta a responder, pedindo papel à Açucena, pena a um Rouxinol, escreveu e mandou ler por uma campainha o despacho seguinte:
A Rosa Rainha das flores, a Rosa Princesa do Prado, a Rosa Duquesa do Vale, a Rosa Marquesa do Monte, a Rosa Baronesa do Bosque, a Rosa Condessa do Jardim, Senhora do Nácar, Adiantada das Fragâncias, Almiranta dos Espinhos.
Ouvida a final sentença, ficaram as flores brancas mais desmaiadas, as rubicundas mais acesas, porém sem réplica, porque com temor, a tempo que uma mão vivente cortou súbita a Rosa, castigando sua soberba com sua ruína.
MORALIDADE.
É esta Rosa jeroglífico dos soberbos poderosos, que arrebatam para si até as honras que se devem aos mais; não repartem os bens próprios e vinculam-se os alheios; tudo olham como tributo seu, assim se estendem ao que é de outrem, até que vem a morte significada naquela mão, e lhes faz perder em um instante o negócio de toda a vida.
Oh, grande! Oh, poderoso! Reparte de tua honra com os pequenos! Toma exemplo em Deus, que sendo o que é, nos deu na criação o título de filhos, na Encarnação título de irmãos, no Sacramento título de Deuses, fazendo-nos um consigo. E assim se não ficou com sua grandeza maior, porque é infinita, ficou mais estendida por comunicada. Torno a bradar que faças como Deus, porque te arrebatará o prémio para o Céu e não a mão da morte para o Inferno. (1-3)

Que falta faz esta Estrada, tão interrupta, a aromatizar a viagem com flores e letras.
Belíssimo texto.
Regresse sempre, Sara.
Tem razão, minha querida. Não tenho muitas desculpas… ainda por cima.