Cortaram os trigos. Agora
A minha solidão vê–se melhor.
Sophia, O Nome das Coisas, 1977
Não é por estar do outro lado do mundo que as coisas do meu mundo me passam ao lado. Estas não passaram. Nem o incêndio que tudo levou na sua frente, nem as fotografias do Miguel Valle de Figueiredo que me ferem e me enchem de memórias de um sofrimento que não vivi. Mas consigo imaginar, porque conheço as gentes da minha aldeia, capazes da coragem suficiente para esquecer o medo e adiar a dor quando urge combater as chamas e defender a vida e os bens.
Passo uma a uma, com demora, as fotografias do Miguel que farão parte da exposição Cinzas a inaugurar na ACERT em Tondela no próximo dia 24, verdadeiros documentos de uma memória que continua ferida. Mas não consigo distanciar-me da dimensão estética e desse acaso, que nunca nele é acaso, que mortifica e apunhala. Barthes chamou-lhe punctum. Nas fotografias do Miguel são os rasgos na paisagem, as linhas visíveis e contrastantes, as curvas queimadas das árvores ainda de pé e cheias de memória do verde da primavera, o inimaginável branco da cal, os muros sem sentido, a ondulação da terra castigada, as paredes caídas que tornam o vazio mais sensível.
A tragédia tem em si um sentido estético, um sentido moral e ético. Impõe-se pelo silêncio, pelas palavras contidas, pela dignidade da dor, interpelando quem vê, obrigando ao refazer da memória. A relação entre o facto e o efeito fica reatada, acordada novamente pelo olhar. Cada fotografia reencontra a tragédia. Cada fotografia desenha um quotidiano perdido. Cada fotografia lembra que o tempo não cura o que aos homens compete fazer e conseguir. O Miguel fez.
Escolhi apenas uma fotografia de todo o conjunto: o céu, a casa, a pedra e a cal, o branco das paredes, as árvores do quintal, as pinceladas bucólicas e quase impressionistas. E depois as janelas abertas para lado nenhum, como olhos que se abrem e já não vêem, corpo em ruína.
Em dezembro estive em casa e pela primeira vez em toda a minha vida perdi-me nas matas que conheço desde menina. Sem árvores, sem margens, os caminhos fundiram-se sob a cinza e a caruma. A nossa solidão ficou maior.
© Miguel Valle de Figueiredo, 2017