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Casos, opiniões, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece.
Camões, Soneto “Correm turvas as águas deste rio”
A releitura de Orbe Celeste, de Soror Madalena da Glória, publicado em 1742, foi o motivo para o terceiro artigo na série Teografias. Começou assim:
“A conferência inaugural do Colóquio “Metamorfoses da Santidade”, apresentada por José Carlos Seabra Pereira, com o título “Camões e os caminhos difíceis da espiritualidade”, levantou um conjunto de questões que puderam tornar-se pano de fundo para a minha intervenção e, sobretudo, para este artigo, tendo em conta a reincidência desses motivos da poesia camoniana na literatura posterior. Com efeito, a demonstração da “ânsia de perfeição”, conjugando o Belo e o Bem, a valorização do “conhecimento”, a presença constante do dualismo, estruturando múltiplos pares opositivos, são o ponto de partida para considerar o dissídio íntimo, o diálogo interior e a auto superação, perante o absurdo e o desconcerto metafísico da poesia camoniana, que não será só ético e social.
A passagem da literatura maneirista para a literatura barroca operou uma sistematização deste dissídio, no sentido da sua aceitação como “dado adquirido”. Se este “acordo tácito” sobre a evidência das dicotomias interiores não invadiu completamente a poesia, pelo menos a sua certificação marcou o percurso da produção ficcional, sobretudo a partir das obras de Gaspar Pires de Rebelo, acentuando-se através do século XVII, acabando por se considerar como norma da ficção alegórica nos finais de Seiscentos e primeira metade do século XVIII. A abordagem desta questão tem a ver com o processo de validação e legitimação da ficção romanesca barroca, que obedeceu à conjugação equilibrada do prodesse e do delectare, resultando numa vasta produção de novelas morais e exemplares (Augusto, 2010).
Na sua extrema condução dos comportamentos, espartilhados entre o vício e a virtude, condenando o primeiro, louvando o segundo, a ficção foi adquirindo contornos programáticos, constituindo, no conjunto da produção espiritual barroca, um vasto manual para esse estado de conformidade entre a vontade do homem e a vontade de Deus a que chamamos “santidade”. A procura desse estado de beatitude, forma maior de ultrapassar a fragilidade humana, implica um estado de perfeição, um estado que transcende a dimensão humana e aproxima o homem de algo maior, para além da contingência da vida e da morte. Este percurso para a santidade, que acontece quotidianamente, ganha na literatura espiritual barroca, contornos quase épicos e heroicizantes, mercê das grandes alegorias, da peregrinatio e das magnae pugnae, que o compõem. Mas se não é quotidiano na aparência e no discurso retórico, é definitivamente um processo levado a cabo ao longo das horas, dos dias, da vida humana.”
Sara Augusto, “Orbe Celeste: histórias da perfeição”, Teografias. Metamorfoses da santidade, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2013, pp. 173-183.
Aqui: Orbe celeste.