Obras de Misericórdia? perguntou Floriteia, “entendo-as em mui diferente sentido que aquele comum, que lhe deu este nome, assim não tenho nenhuma devoção com elas, nem hei-de ter nenhum exercicio”.
Agravo e desgravo da Misericórdia, BPMP, ms, fl. 1v.
Da subversão nasce a imaginação? Ou o processo é inverso?
Artigo em construção: As figuras da ficção romanesca do maneirismo e do barroco: problemas e exemplos.
Este trabalho insere-se no desenvolvimento do projecto de investigação coordenado por Carlos Reis, no âmbito do Centro de Literatura Portuguesa, subordinado ao título Figuras da Ficção. Tendo em conta o propósito central do estudo da personagem ficcional como categoria fundamental dos textos narrativos ficcionais, pretendo mostrar como a personagem literária assumiu uma relevância significativa em períodos anteriores aos finais do século XVIII.
Por outro lado, esta consideração terá forçosamente que ter em conta questões de periodização literária, com as respectivas características histórico-culturais, particularidades de mundividência e oscilações ideológicas, e ainda questões de genologia, que tornam incontornável o domínio da codificação das categorias da narrativa, sobretudo das personagens e da acção que desenvolvem. O trabalho apresentará, assim, duas partes distintas, sendo que na primeira se mostrará como a produção ficcional esteve submetida a constrangimentos contextuais, e na segunda parte será apresentado um conjunto de narrativas, com as respectivas personagens, que podem funcionar como exemplo. (…)
Primeira parte: Periodização, codificação e validação. (…)
Segunda parte: Personagens. (…)
[A citação em epígrafe diz respeito a Floriteia, uma das personagens mais radiosas na ficção romanesca do período barroco, protagonista da novela atribuída a soror Maria do Céu, em manuscrito não datado, Agravo e desagravo da Misericórdia. Já escrevi sobre a matéria aqui e aqui.]
As considerações tecidas neste trabalho pretenderam mostrar como entre períodos literários distintos, entre códigos discursivos, entre validações e justificações da produção narrativa, a figuração das personagens, na ficção narrativa do Maneirismo e do Barroco, apresenta, assim, idiossincrasias que devem ser tidas em conta e estudadas com atenção. Trata-se de factores contextuais que determinaram a dimensão das personagens e o seu protagonismo, estabelecendo prioridades distintas daquelas que haveriam de marcar a ficção oitocentista. A submissão ao princípio da «utilidade», tornando as personagens funcionais em relação à necessidade didáctica e moral, tal como a obediência a códigos bem determinados, provocou, por outro lado, a multiplicação de um conjunto de personagens com uma notável similitude de contornos.
As personagens que foram individualizadas na segunda parte do trabalho constituem uma minoria, que uma releitura cada vez mais atenta sob o prisma da problemática da figuração das personagens literárias pode incrementar. Por agora, esta particularização teve sobretudo em conta a forma como o protagonismo das personagens do elenco correspondia a alguma forma de desvio, tanto do código unificador, como do princípio da articulação entre «bondade» e «virtude», definindo aquelas que podem ser as «personagens da ficção» deste longo período situado entre 1600 e 1750.
Conferir:
Sara Augusto,A alegoria na ficção romanesca do Maneirismo e do Barroco, Lisboa, FCG/FCT, 2010, pp. 335-345.
Sara Augusto, “Agravos e desagravos da Misericórdia: ficção barroca”, in Actas del Congreso Internacional de Historia y Cultura en la Frontera – 1er Encuentro de Lusitanistas Españoles (Cáceres, 10-12 de Novembro de 1999), Tomo II, Cáceres, Universidad de Extremadura, 2000, pp. 315-322.
Sara Augusto, “Os desagravos de Floriteia e as histórias de Gambo e Tupinda”, Máthesis, Viseu, 9 2000, pp. 85-103.
Imagens: Retrato de Senhora, MNAA, Lisboa, Matriznet.