“O que as leis acalmam é esse instinto violento que domina as relações entre indivíduos e corpos. Acalmar, porém, não é eliminar, mas adiar.”
Atlas do corpo e da imaginação. Teoria, fragmentos e imagens, 2013: 73
É possível que vá ler o Atlas do corpo e da imaginação todinho de seguida, mas por agora contento-me em abri-lo sem ordem e ler o que me apetece. A apresentação em Coimbra, no dia 11 deste mês, na Livraria Almedina, esteve a cargo de José Carlos Seabra Pereira. E depois ouvi Gonçalo M. Tavares falar das coisas mais simples, das que se tornam essenciais quando se fala de poesia e de tudo o resto que lhe diz respeito. O livro é imenso, em todos os sentidos. Folheei e comprei. Agora tem o meu nome e o do Gonçalo na primeira página e estou muito feliz como o meu novo livro do desassossego.
Abri-o para escolher a epígrafe. Pertence à Parte II, “O corpo no mundo”, quando se fala de “Os Outros” e das “leis e sangue”. Mas hoje à noite, quando a insónia roía as horas, os dedos tinham avançado para a “Racionalidade e limites” e quedaram-se na “Razão e oração”. Durante o dia tinha pegado na ars orandi de Frei Heitor Pinto, a Imagem da Vida Cristã, vinda de um outro universo, de uma teologia e de uma prática de meditação quinhentista. Talvez fosse por isso.
Segui o raciocínio de Gonçalo M. Tavares e cheguei aqui, “oração e investigação”:
E se a oração fosse vista, afinal – coloquemos esta hipótese – não como uma aliança com o inimigo (aquilo que a razão não compreende) mas como um outro método de fazer investigação. A oração, as palavras não científicas, sem peso e sem comprimento exactos, palavras tumultuosas, quase grotescas, quase não humanas, quase poéticas – no sentido de não exigirmos dela clareza, mas sim uma certa beleza instável que nos levante – e se essas palavras (da oração) fossem re-interpretadas? Reintegradas no percurso da resistência humana, resistência física e intelectual que, dia após dia, tem um único objectivo: sobreviver para compreender, compreender para sobreviver melhor?
Eis, pois, uma hipótese: poderá o discurso linguístico dirigido ao Divino ser aceite como um outro modo de investigar? É que, por exemplo, para Platão, falar e dialogar são as maneiras supremas de fazer filosofia, de investigar. Entendendo-se a oração como o diálogo entre o humano e o não humano, não poderá também este ser um caminho feito pelo pensamento, e não pelo medo e pelo espanto? Pois sim, pois não; pois talvez.
O raciocínio continua. Vão ler.