As palavras soçobram rente ao muro
A terra sopra outros vocábulos nus
Entre os ossos e as ervas,
uma outra mão ténue
refaz o rosto escuro
doutro poema
António Ramos Rosa, in A Nuvem Sobre a Página
***
Era assim que eu queria escrever, num instante de luz e sombra, mas não sei fazê-lo. Como pensar esta intimidade única com o mundo que, por um acaso da fortuna, vislumbro? Por vezes cada objecto se ilumina, e eu pude ver. E todos os outros que não vi?
Tão breve e tão profundo. De tal forma que esse fulgor me perfura como um cristal de gelo caído dos ramos de inverno, como um olhar inesperado de um anjo de mármore, como um cintilar de água batida pelo sol nascente. E assim acumulo metáforas e imagens, incapaz de ir mais além.
Mas eu queria escrever e contar daquele tempo não medido entre o olhar e o aperto no peito, entre o sorriso leve e os olhos húmidos sem razão definida, entre o sentido e o gesto. Mas não consigo. Esbarro no arame farpado de uma sintaxe presa, sem que as palavras se tornem asas ou luz. Sinto o peso de todas elas, tantas, imensas.
São as palavras que me tornam pedra e terra e musgo. São as palavras que me tornam eco e tempo. São as palavras que me tornam íntima do mundo.

Estar Só é Estar no Íntimo do Mundo
Por vezes cada objecto se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo
António Ramos Rosa, Poemas Inéditos.
É sempre com agrado que venho até aqui!
Hoje eu também queria:
“Mas eu queria escrever e contar daquele tempo não medido entre o olhar e o aperto no peito, entre o sorriso leve e os olhos húmidos sem razão definida, entre o sentido e o gesto. Mas não consigo. Esbarro no arame farpado de uma sintaxe presa, sem que as palavras se tornem asas ou luz. Sinto o peso de todas elas, tantas, imensas”.
Obrigada Sara vou refletir!
beijinho
É o que fazes quando fotografas: crias intimidade com o mundo, querida Clarisse! Abraço.
António Ramos Rosa, O Livro da Ignorância, col.« Pequenos Continentes », Editora Signo|Brumarte, Lisboa|Ponta Delgada (Açores), Setembro de 1988.
http://bit.ly/xUEACa
Ficou belíssimo.
Estou sem palavras, mas de olhar turvo… Uma emoção este conjunto, Sara. É sempre tão bom vir aqui!