Sempre gostei desta expressão utilizada por Baltasar Gracián, a «agudeza fingida», utilizada no Tratado segundo de la agudeza compuesta, no Discurso LV, última parte da Agudeza y arte de ingenio, publicado pela primeira vez em Madrid, em 1642 (Baltasar Gracián, «Agudeza y arte de ingenio», in Obras Completas, Madrid, 1944).
Pela ficção, anunciada como processo de unificar e de dar sentido a um conjunto cerzido de metáforas, se conseguia esta «invenção fingida», implicando uma estrutura narrativa e provavelmente a construção de um enunciado alegórico. Assim, a ficcionalidade parece assentar predominantemente na semelhança entre duas realidades, estando a agudeza exactamente nessa translação entre o «mentido» e o verdadeiro. E como esta construção ficcional se torna fácil e doce ao intelecto, compreende-se que grandes autores se tenham servido deste género de agudeza composta nos seus escritos mais sérios, destinados ao ensino e à doutrina. Utilizando o jogo das analogias, tal forma, doce e proveitosa, permitiria «disfrazar la verdad para mejor insinuarla sin contraste».
Ao concluir o Discurso LV, Gracián sintetiza o que até então tinha apresentado:
«Es, pues, la agudeza compuesta fingida un cuerpo, un todo artificioso fingido, que por translación y semejanza pinta y propone los humanos acontecimientos. Comprende debajo de sí este universal género toda manera de ficciones, como son epopeyas, metamorfosis, alegorías, apólogos, comedias, cuentos, novelas, emblemas, jeroglíficos, empresas, diálogos.» (p. 258)
Este tratado teórico de Gracián sempre me deixou espantada pela sua clarividência, tão distinta dos tratados de retórica portugueses da mesma altura, incapazes de se libertarem de uma definição restrita de alegoria, limitada a tropo e a conjunto de metáforas, para alcançarem uma estrutura muito mais ampla, com alcance retórico, narrativo, conceptual, de outro nível, em que passasse de figura de estilo a modo de expressão, um modo de discurso, o modo alegórico, com as sua próprias regras e convenções.
É a esta noção de «invenção», de «agudeza», que corresponde a produção literária barroca, desde os apólogos de D. Francisco Manuel de Melo, às metáforas conventuais de Soror Maria do Céu, às longas novelas do padre Alexandre de Gusmão, Nuno Marques Pereira e Soror Madalena da Glória.
Deste modo do discurso, em que toda a narrativa suporta um vasto rendilhado de conceitos morais em interacção, assim validando o delectare pela intensidade correspondente do prodesse, também faz parte a Guerra Interior, de Matias de Andrade. Personagens inesperadas, em espaços de «maravilha», contemplando a guerra entre dois mundos irreconciliáveis, desenhados pela imaginação!

São os contornos desta imaginação que me interessam, sobretudo no que diz respeito à construção de mundos inexistentes. Com efeito, a construção de Matias de Andrade não é totalmente inovadora já que recorre a um discurso emblemático por demais estabelecido e regido por convenções raramente quebradas. A descrição das virtudes morais, que comandavam os esquadrões da cidade do bem, quando se apresentam no cortejo final do triunfo, coincide extraordinariamente com a descrição das mesmas virtudes que decoravam o catafalco e a eça das exéquias de D. João V, celebradas em Viseu, em 1750, por ordem do bispo D. Júlio Francisco de Oliveira.
O mesmo bispo a quem Matias de Andrade dedica a sua Guerra Interior… vendo bem, não posso deixar de escrever isto sem sorrir, ao perceber como a teia tão bem se desenha e como um mesmo discurso pictórico e narrativo percorre diferentes expressões artísticas, num mesmo tempo, com as mesmas intenções, marcado pelas mesmas figuras, num mundo que, como o de hoje, ficava ali ao virar da esquina.
Ver:
Sara Augusto (2010). A Alegoria na ficção romanesca do maneirismo e do barroco. Lisboa, FCT/FCG.