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A “fonte do pensamento genuíno é o espanto, espanto por, e perante o ser. O seu desenvolvimento é essa cuidada tradução do espanto em acção que é o questionar…”
G. Steiner, Heidegger, Dom Quixote, 1990, p. 53
Terceira crónica publicada no Correio Beirão, 14 de março.
Atlas do Corpo e da Imaginação
Que “há um antes e um depois de Gonçalo M. Tavares” já disse José Saramago. E isto, que me parecia exagero, deixou de parecer quando comecei a ler o Atlas do Corpo e da Imaginação. O largo volume está dedicado a Bernardo Sassetti… e por isso substituí as Gnossiennes por Alice durante algumas horas, com a luz da chuva a criar a melancolia adequada à minha leitura. Talvez não ao Atlas, que é feito de outra robustez e materialidade. Corro as palavras-chave no verso da capa e parecem-me ordenadas… do mundo para o corpo, do corpo para a imaginação, para a linguagem, para a filosofia, para a imagem, para a memória… e por aí adiante, cruzando o pensamento nas suas tão várias realizações, sejam elas a literatura, a arquitectura, a dança, o teatro, o cinema e a arte.
Leio o índice. A tentação de desgovernar a leitura é grande, justificando o subtítulo Teoria, fragmentos e imagens. Fico presa logo no início, entre o “espanto e o fragmento”. Recuperando George Steiner, em Heidegger, a “fonte do pensamento genuíno é o espanto, espanto por, e perante o ser”, Gonçalo M. Tavares continua a reflexão que orientará todo o Atlas: que esse é “um espanto que sabe para onde vai” e nesse saber segue linhas exaltadas e hesitantes, desenhando um “trajecto pressentido”, chegando à formulação de Wittgenstein, que “as minhas dúvidas formam um sistema”. Estou em casa, pensei comigo mesma. Continuo no “corpo no método”, mas hei-de chegar ao “corpo no mundo”, ao “corpo no corpo” e finalmente ao “corpo na imaginação”. Fragmentos ordenados. Já experimentei abrir o volume a esmo e ler o texto que me aparece em frente dos olhos. Por agora, acabei por ler a sequência toda dos fragmentos desta parte inicial e tentei perceber como se estabelecem pontes e rupturas e como se descobre esse caminho por entre reflexões e erudições.
Tudo o que por agora diga é pouco e sempre menos do que é devido. Leio com alguma ânsia, descobrindo respostas para perguntas que nem sabia que tinha dentro de mim. Os fragmentos demonstram um raciocínio poderoso, de que as fotografias são prova, evidências, ao mesmo tempo uma visão paralela e reflexiva. Leio o Atlas da Imaginação e do Corpo como poesia, não a discuto. Talvez porque este atlas seja tremendamente belo e o “argumento belo convence melhor”. Continuo a ler.