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Como, quando a flor purpúrea, cortada pelo arado,
desfalece moribunda, ou as papoilas, de caule cansado,
deixam pender a fronte, se acaso a chuva sobre elas carrega.
Eneida, IX, vv. 427-429.
Deve ser isto a que chamam tristeza
Já não me lembro da diferença entre a luz e a sombra. Agora só conheço a distância da sombra para a sombra. Deve ser isto a que chamam tristeza, a esta névoa de que não acordo por muito que passem as horas.
E vou descendo, de dia em dia, até ao coração da noite, de sombra em sombra. E vou descendo, de pedra em pedra, pela margem do rio, cada vez mais sombra, cada vez mais água, cada vez mais pedra.
E vou saltando de ponteiro em ponteiro, petrificado o tempo, confusas as horas. Marcam a distância entre a sombra e a sombra, arrependido e distorcido o movimento.
E vou passando de página em página, sem medir as letras, esbatidas, rasurado o sentido. Falam do caminho da sombra para a sombra, e dizem sempre o mesmo, as palavras.
Já nada sei da luz, estranho mito com que me explicaram as coisas. Da cinza para a cinza, da pedra para a pedra, da sombra para a sombra. E à sua volta se arruma o vazio.
Deve ser isto a que chamam tristeza, a esta pedra cinzenta, vazia e sombria, que estilhaça o ponteiro das horas e liquefaz os dias.
Há na chuva uma estranha irmandade que me leva da sombra para a sombra. Nem levanto os olhos das palavras rasuradas e esbatidas. A sombra ouve-se cair na rua e sabe a esta chuva que liquefaz o corpo. E vou descendo pelo muro, procurando o musgo, de pedra em pedra, de sombra em sombra.
Deve ser isto a que chamam tristeza, a um muro caído no meio do campo, interrompida a ordem das pedras, sombras de um mito abandonado. Da sombra para a sombra é o caminho.
Ana de Santa Cruz