Quem sabe aos poucos, quando conseguir dar os primeiros passos, quando conseguir me libertar do fardo, não consiga também dar nome às coisas? E por isso, só por isso escrevo.
(Tatiana Salem Levy, 2007, p. 12)
Saiu o meu primeiro artigo sobre os romances de Tatiana Salem Levy, “A chave de casa: alegoria na produção ficcional de Tatiana Salem Levy”, nas páginas 60-74, no nº 53 da Revista da Faculdade Porto-Alegrense, a Ciências & Letras.
“Escritora com produção ficcional recente no panorama da literatura brasileira, o primeiro
romance de Tatiana Salem Levy foi A chave de casa, de 2007. O título escolhido, tal como aconteceria com o segundo romance, Dois rios, de 2012, proporciona uma leitura temática relacionada com os múltiplos sentidos, literais e temáticos, da “chave”, desenhados no processo da construção narrativa. Recorrendo ao fragmento enquanto forma privilegiada de registo da memória, o discurso narrativo transforma heranças coletivas de emigração e exílio, projetando-as na viagem e na escrita enquanto formas de afirmação da identidade” (Resumo).
“Não sou eu que digo que o texto é uma alegoria. É o título que o indicia, centrando e fazendo partir todos os sentidos de um objeto que, ao longo do romance, perdeu e ganhou sentido, ou seja, conduzindo a uma ‘leitura temática’. A ‘chave’ tornou-se inútil, não havendo funcionalidade para ele, não havendo casa, nem porta para abrir. Esgotou-se o sentido literal. Mas ganhou outras projeções, e tornou-se ‘chave de ouro’, fechando universos como faz habilmente o último verso dos sonetos. Por outro lado, a figura ‘manipuladora’ do avô, discreto e silencioso, não evitou o choque da neta deparando-se com a ausência de porta. Foi como se afirmasse: vai por mim, mas vai por ti também; leva a chave, mesmo que já não haja nada para abrir com ela; precisamos de chaves, mesmo que as portas velhas e antigas tenham desaparecido; a chave, qualquer chave, é tua, é a tua vida; terás as tuas portas para abrir; a outra casa era dos outros e pertence à história deles, não à tua.
Esse processo implicou um movimento constante da sombra e da imobilidade, o ‘estado de musgo’, para um estado luminoso, do peso de uma herança de dor à leveza quotidiana, de um quarto húmido e fechado a Istambul, Esmirna e Lisboa, da expiação de uma culpa ao reencontro consigo mesma, da morte e da violência à memória leve dos que foram amor na
nossa história, do silêncio às palavras.
O mesmo processo de leitura, de construção de sentido proporcionado por estruturas narrativas fragmentadas e abertas, pode ser aplicado ao segundo romance, Dois rios, publicado em 2012. É evidente a continuidade entre os dois universos narrativos, sobretudo assente na recuperação de determinados motivos, relacionados com a infância e o peso das histórias familiares sobre a construção das personagens, e com a arrumação narrativa, feita da mesma descontinuidade temporal. Assim, é possível encontrar a mesma intensidade emotiva, as mesmas relações humanas num estado de peso e herança, o mesmo discurso de memória e fragmentação, entrelaçando passado e presente, como se o sentido do último dependesse de uma reflexão e de uma explicação para o primeiro. E da mesma forma, o nome de lugar, ‘dois rios’, assume uma ressonância que vai além da sua existência física, refletindo-se na narrativa dividida em duas partes, nos dois gémeos, nos dois tempos (antes e depois de Marie-Ange), nas duas vozes e nos dois pontos de vista. Trata-se de dois romances com uma construção narrativa bem conseguida, que implica uma leitura atenta e exigente, mas, sobretudo, que seja capaz de destrinçar e conferir sentidos e preencher lacunas. Uma leitura que é um jogo constante com o próprio texto ficcional”. (p. 72)
Uma opinião sobre “A chave de casa, nas Ciências & Letras”