O número 2 da revista Teografias, de 2012, foi um dos mais interessantes, com o tema Gramáticas da Criação: Adão, Eva e outros mitos. Para este artigo fui buscar uma das narrativas barrocas mais significativas e dei-lhe por título “Peregrino do Paraíso: o compêndio narrativo de Nuno Marques Pereira“. Foi uma revisitação bem interessante e feita de um ponto de vista pouco usual, fugindo ao consagrado tópico da narrativa alegórica e moral. Com esta obra de Marques Pereira, em dois volumes datados respetivamente de 1725 e de 1733 (este segundo manteve-se manuscrito até à edição conjunta da Academia Brasileira de Letras em 1939) pretendi mostrar a presença e a relevância de uma “gramática da criação” na ficção exemplar da época barroca. A ocorrência do mito de Adão e Eva e a referência à história do dilúvio, uma das lendas indígenas, ganham, por outro lado, novas ressonâncias por entre a doutrina e o enredo. Com efeito, permitem uma interpretação da paisagem humana brasileira, de feição extremamente negativa, uma imagem a ser reconvertida pela releitura do mito de Tamandaré na ficção indianista de José de Alencar.
Fica a última parte do artigo:
«O título que dei a este trabalho, Peregrino do Paraíso, possibilitou-me a abordagem das “gramáticas da criação” numa obra vasta onde dois mitos, situados numa ordem temporal de primeira e segunda criação, são tratados segundo uma lógica de representação característica da literatura moral e exemplar barroca. Por outro lado, a figuração humana, tanto no sentido geral do “homem – Adão”, como no sentido mais restrito do indígena brasileiro, implicam a manifestação de uma imagem pouco favorecida pelo olhar do Peregrino.
Quanto ao mito de Adão e Eva, não se poderia esperar senão a estrita visão ortodoxa determinada pelo Texto Sagrado. Mas, como foi visto, a presença do escritor barroco amplia, acrescenta, reduplica, alegoriza, retomando formas antigas como a discussão e o debate, mas sobretudo a luta entre virtudes e vícios, como foram a Soberba e a Virtude. Do homem expulso do Paraíso vem a noção de pecado, de redenção e de homo viator. Mas se o homem foi afastado da visão de Deus, não o foi, contudo a natureza, que continuou abençoada, imagem próxima da misericórdia e da beleza divinas. Ao homem restou-lhe ser “culpado” e peregrino num mundo efémero.
Quanto a outros mitos de origem, nesse caso o Peregrino da América torna-se extremamente rico, tendo em conta a filiação do indígena brasileiro nos tempos antigos da Babilónia e a lenda de Tamandaré. Em qualquer dos dois casos, as referências enquadram-se numa visão negativa que contaminou toda a época barroca e que se alargou a outras manifestações para além da ficção romanesca. Para além dos indígenas, o retrato negativo estende-se ao colono e ao negro escravo, alvos de intensa campanha moralista. Do outro lado, resplandece a natureza, impoluta, como memória do Paraíso perdido. A recuperação da lenda de Tamandaré e a valorização do indígena no Romantismo corresponde a desígnios por demais conhecidos: a valorização de temas nacionais com vista à construção e à afirmação de uma literatura com contornos próprios. O índio teve um papel preponderante, dando origem a uma das vertentes mais significativas da literatura romântica brasileira, o indianismo.
No que a este trabalho diz respeito, tendo em conta a interligação entre os mitos da criação e a duplicidade das visões do homem e da natureza brasileira, o caminho feito ao longo do tempo caracterizou-se pela distância entre os dois aspetos. Só com a intenção épica e nacional do Romantismo é que se verificou a fusão entre a excelência heroica do indígena e a excelência da natureza, pela integração de valores, lendas e tradições. À medida do herói estava uma natureza sublimada, intocável e cúmplice, participando de uma mesma linguagem simbólica.
Tal qual outro Adão e outro Noé, também Tamandaré “desceu com a sua companheira, e povoou a terra”.»