Sara Augusto. «Escola de Bethlem: amor e pedagogia». Via Spiritus, Revista de História da Espiritualidade e do Sentimento Religioso. CITCEM, nº 17, 2010, 109-132.

Escola de Belém, Alexandre de Gusmão, Évora, 1678
Este artigo, publicado na reconhecida revista Via Spiritus, editada pelo Citcem, unidade de investigação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, teve uma história longa. Em primeiro lugar, o estudo da Escola de Bethlem, do Padre Alexandre de Gusmão, tratado espiritual publicado em Évora em 1678, resultou de um convite de Zulmira Santos para uma conferência, apresentada a 3 de abril de 2009, no Centro de Estudos de Espiritualidade, intitulada «A Escola de Bethlem do Padre Alexandre de Gusmão». Foi o ponto de partida para o desenvolvimento de um estudo que, com outros desenvolvimentos, haveria ainda de ser apresentado no Museu Grão Vasco, em Viseu, no Natal de 2010, a convite de António Filipe Pimentel, então director deste museu.
Foi um dos trabalhos que mais gostei de fazer e de apresentar, tanto no Porto, inter pares, como em Viseu, numa das salas mais simbólicas do museu, onde se erguem as pinturas de Grão Vasco que fariam parte do altar mor da catedral viseense e se tinha colocado em exposição o volume do espólio antigo da Biblioteca Municipal de Viseu. E continuo a gostar de lê-lo, sobretudo nesta época de Natal, à porta dos Reis e, por este mesmo motivo, o publico no Estrada de Prata.
O artigo, publicado entretanto na Via Spiritus, é o resultado de uma leitura cuidada da obra, integrada no seu contexto de produção e leitura, tal como se depreende do último ponto do texto, em jeito de conclusão (ponto 4: 128-130).

«A leitura cuidada dos quatro Livros da Escola de Bethlem, obra piedosa, didáctica e de meditação, permite perceber como está perfeitamente enquadrada no contexto religioso e literário em que se insere.
Em primeiro lugar, tendo em conta as práticas de espiritualidade e oração da Companhia de Jesus, esta obra do Padre Alexandre de Gusmão, tal como os outros títulos da sua produção, corporiza o princípio da necessidade de íntima relação entre a acção, a missionação e evangelização, com a necessidade de oração e de intimidade com Deus. Desta forma, a maturidade espiritual, conquistada nas três classes da Escola de Belém, exige contemplação e oração, mas impõe sobretudo um empenhamento forte para dominar os apetites da vontade e os devaneios do espírito: de joelhos no presépio, meditando o mistério do Nascimento do Deus Menino, mas incorporados na milícia ao serviço de Deus. Os factos da vida do reverendo Padre Alexandre de Gusmão são um exemplo desta feliz união que marcou os desígnios da Companhia de Jesus.
Em segundo lugar, a Escola de Bethlem segue o princípio que norteou grande parte da produção religiosa e moral da época barroca: que a lição se torna mais eficaz quando proporcionada de forma mais aprazível, sendo que, como ficou provado no comentário, o deleite (a curiosidade) deve servir a lição (a devoção). Assim, recuperando novamente a lição de Horácio, Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci, lectorem delectando pariterque monendo, os artifícios discursivos tornam o texto fluido, variado, flexível, chamando, espicaçando, surpreendendo e orientando a atenção do leitor. A estrutura dos documentos morais, seguindo procedimentos variados e diversificados, o constante recurso à metáfora, tanto no nível micro como macro-textual, a introdução de pequenas narrativas de carácter exemplificativo, o carácter visual da dissertação, recorrendo frequentemente à representação emblemática, são factores que tornam o discurso extremamente apelativo. E engenho e agudeza invadem cada parágrafo, cada documento, mas o que se torna mais visível e definitivo é a forma como a Escola de Bethlem participa no universo mais abrangente da literatura espiritual, em particular, e do discurso literário e artístico barroco, em geral. Deste modo, partilhando temas e formas, o texto de Alexandre de Gusmão torna-se reconhecível, despertando níveis de aceitação e satisfação no leitor, detentor da mesma linguagem, tornando-se também, por isso mesmo, efectivo na sua perspectiva didáctica.
Foi esta inclusão num macro-discurso que nos permitiu reconhecer as fortes ligações com outros géneros literários, da poesia à ficção e à parenética, gozando de uma proximidade de temas e formas. É óbvio que tal ligação se torna ainda mais forte e evidente neste período que podemos situar, mais ou menos, entre a segunda metade do século XVII e a primeira metade do século XVIII, no campo da produção no contexto religioso e conventual.
E não se trata apenas de intertextualidade temática ou formal, como fomos dando conta ao longo desta leitura e ao nomearmos obras e autores onde esta pareceu mais convincente, mas de uma partilha mais interna e mais profunda. Tal como cada novela moral e alegórica transporta com o seu enredo um conjunto considerável, mais ou menos manifesto, de conteúdo didáctico, de lições e documentos morais, a Escola de Bethlem permite-nos verificar como a situação inversa também pode acontecer. Trata-se de uma efectiva miscigenação de géneros literários. O percurso de Preciosa, da Pastora e de Angélica, protagonistas de três novelas alegóricas de Soror Maria do Céu e Soror Madalena da Glória, ou ainda a jornada do Predestinado Peregrino, narrada por Alexandre de Gusmão, representam a viabilidade das três vias espirituais no alcançar da salvação. Cada etapa do enredo, cada avanço, cada recuo, cada conflito, cada render de alma, concretiza a passagem pelas três classes até ao exame final, onde se apura a perfeição necessária. Mas a Escola de Bethlem, estabelecendo caminhos por entre a lição e a meditação, desenha esse mesmo enredo, contando-nos a história da alma humana, etapa a etapa, classe a classe, até à feliz união com o divino.
Qual o factor da diferença da Escola de Bethlem? Todo o seu engenho e agudeza estão na forma como a matéria espiritual se faz apresentar a partir de uma gravura inicial e para ela aponta continuadamente, estabelecendo laços impossíveis de ignorar entre o discurso literário e o discurso visual e compondo uma unidade bem construída e adequada aos fins didácticos pretendidos. A representação do presépio surge como origem e motor da produção de conceitos, com base em analogias estabelecidas com rara argúcia e atenta observação de cada figura e de cada pormenor da lapinha.
As últimas linhas da Escola de Bethlem fundem as duas realidades, a do ensino e da metáfora, mostrando o cumprimento de um longo caminho. Aliás, esta é a principal diferença entre a “escola” e a “escola de Belém”: a última dura a vida inteira, ficando muitas vezes as três classes por cumprir.
Sigamos, ó Senhor Jesus, a vós, por vós, e para vós, porque vós sois caminho, verdade e vida, caminho no exemplo, verdade na promessa, e vida no prémio, que o mesmo Senhor terá por bem conceder a todos os discípulos de sua Escola de Bethlem. Amen. (321)»