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Making a film can be a transformative experience.
It was a very formative experience and it’s good because it took so long. If not, it would have been a waste of time.
Alfonso Cuaron, na cerimónia da entrega dos Oscars, Los Angeles, 2 de março de 2014
Gravity foi o filme mais premiado na cerimónia de entrega dos Oscars 2014. Foi sobre ele a minha segunda crónica no Correio Beirão (nº6, 28 de fevereiro).
Gravidade
Não é definitivo que seja assim mas parece haver dias certos para tomar decisões tão simples como “não consigo estar em casa e vou ao cinema ver… consulto o cinecartaz… Gravity”. Foi a decisão imediata e certa para um dia complicado. Quando o filme começou achei que devia haver pousadas e bancos de jardim no espaço, onde os dias complicados se reduzissem ao império do silêncio e víssemos o sol nascer sobre todos os rios e as luzes da noite a desenharem uma via láctea nos continentes.
Mas não foi assim tão pacífico. Passei todo o tempo a lutar com o enredo e com a minha lógica, que nem sempre consigo desligar, e que a todo o momento me dizia como é que este filme vai chegar ao fim com uma duração decente se já deviam todos ter morrido com tanto destroço à solta… Que Ryan Stone tivesse sobrevivido, sobretudo depois da eventual morte de Matt Kowalski, que tivesse resistido a tanta entrada e saída de gravidade, que tivesse aguentado com incêndios, com falta de combustível e de oxigénio, com instruções em chinês, e ainda consigo mesma e os seus medos, é que me deixou a pensar.
Hoje já consegui juntar tudo o que naquele dia deixei disperso: a ficção científica com uma Ryan Stone quase tão real como eu mesma. E percebi que logo no título do filme se estabelece o parâmetro ordenador do enredo, a gravidade. Entra pelos olhos adentro a sua ausência no espaço, tal como também se vai estabelecendo, pouco a pouco, o contraste entre essa leveza forçada, imposta por lei, e a consciência do corpo; a antítese entre um corpo solto no espaço e um interior cheio de inquietação que naquele silêncio se torna ainda maior, ainda mais pesado. Houve um momento em que todos quisemos que Clooney não tivesse morrido… em que acreditámos que a alucinação de Ryan era real… em que também acordámos daquela letargia em que se afundava Stone e vibrámos com o engenho e a violência com que a cápsula entrou na atmosfera e se afundou no lago.
A água violenta sacudiu-a, sufocou-a, e naquela areia, que as mãos agarraram e prenderam, Ryan sentiu todo o peso do corpo. A paisagem luxuriante, o corpo saído da água e levantado a ensaiar passos, projetaram a imagem de uma nova mulher e de uma nova vida na minha imaginação. E a leitura mudou e o contraste inverteu-se: o peso do corpo e a leveza interior. Há filmes que são vistos na altura certa.
(Gravity, Alfonso Cuarón, 2013)