
Sara Augusto (2012). «Jardins do Bem e do Mal». O Barroco em Portugal e no Brasil (coord. Aurélio de Oliveira et alii). Braga. Ed. Ismai. 289-300.
«(…) Apresentaram-se três casos, em três novelas distintas, que provam as observações que Ana Hatherly tinha desde logo aplicado ao estudo de A Preciosa, de Soror Maria do Céu. Por outro lado, mostram também como, nos movimentos próprios da alegoria exemplar barroca, a configuração do espaço se torna essencial para a definição dos conceitos morais.
A utilização da expressão “jardins do bem e do mal” surgiu do título do livro do escritor norte-americano John Berendt, com o título Meia-noite nos Jardins do Bem e do Mal, publicado em 1994. O livro esteve na base do argumento do conhecido filme realizado por Clint Eastwood, em 1997, com o mesmo título, tendo a cidade de Savannah, no estado de Georgia, como cenário. A expressão ocorre no livro de Berendt num contexto de magia negra, pronunciada por Minerva, “médica-feiticeira” ou “sacerdotisa vodu” (1996: 261), quando se preparava para fazer um feitiço no “jardim das flores”, termo que utilizou para se referir ao cemitério no fundo da rua:
O tempo morto dura uma hora: meia hora antes da meia-noite até meia hora depois da meia-noite. A primeira metade é pra fazer bem. A segunda metade é pra fazer mal. (1996: 266)

É deste contexto, e da importância que o cemitério adquire enquanto espaço social de Savannah, neste caso o conhecido Cemitério de Bonaventure, onde foi fotografada a escultura de Silvia Shaw Judson, a famosa Bird Girl, para capa do romance de Berendt, por Jack Leigh, em 1993, que nasce a metáfora dos “jardins do Bem e do Mal”.
Trata-se de um contexto claramente distinto da novela barroca, não só pelas circunstâncias óbvias de carácter temporal e espacial, mas também pela distinção no que diz respeito à mundividência religiosa e à cosmovisão envolvente. Contudo, houve um aspecto que a leitura da obra de Berendt imediatamente tornou evidente pelo contraste gritante: a impossibilidade de a narrativa ficcional alegórica poder apresentar uma figuração do “jardim” simultaneamente do “bem” e do “mal”. Contrariamente, o título Meia-noite nos Jardins do Bem e do Mal remete para um aspecto que percorre a narrativa de Berendt: a impossibilidade de distinguir a verdade da aparência, o facto de a caracterização positiva ou negativa das personagens não ser evidente, e ainda o caso de o narrador participar dessa fusão, acompanhando pessoalmente as mais diversas e complicadas situações, sem estabelecer qualquer valoração moral em relação a personagens e situações.
Qualquer uma das narrativas barrocas se distancia desta perspectiva, fazendo parte da sua estrutura básica o radicalismo conceptual, multiplicado em metáforas e representações dicotómicas. Por outro lado, esta conceptualização antagónica estabelece uma óbvia gradação valorativa de que a metamorfose é o sinal mais visível: o “jardim do mal” é caracterizado por uma beleza efémera, condenada à ruína e ao disforme; o “jardim do bem” é representado por uma contenção que se transformará na perfeição gloriosa, em que a beleza é o reflexo do Sumo Bem. A leitura alegórica é imediata: o pecado, capaz de envolver os sentidos e conquistar o corpo pelo prazer, conduz à aniquilação perpétua; por outro lado, a prática da virtude, da oração e da penitência, sinais de profundo amor a Deus, conduzirá à felicidade eterna.
Ainda assim, mesmo no âmbito da dualidade da alegoria barroca, os dois braços levantados à mesma altura da Rapariga dos Pássaros de Silvia Shaw Judson ganham um significado muito particular e que constitui o cerne da espiritualidade que deu mote às narrativas: o livre arbítrio da alma, capaz de discernir e escolher entre o Bem e o Mal, facto que torna ainda mais forte a imagem da “guerra interior” e mais definitivo o mistério do Juízo Final, entre a redenção e a condenação eternas.» (298-299)