Cansadas de guerra: Gaspar Pires de Rebelo e Jorge amado

Cansadas de guerra. FERRAMENTAzine. Temas de construção. nº 2.

«Conjugo duas leituras numa semana e subitamente os enredos enleiam-se em movimentos de rejeição e de concórdia de uma forma sempre surpreendente e inesperada. Reavalio a minha “biblioteca anterior” e percebo a vantagem dos anos ocupados em leituras, mesmo que dispersas ou então, com mais frequência, obrigadas por contingências de proximidade temática e formal. As relações entre grotesco e poder obrigam-me a reler Os Infortúnios Trágicos da Constante Florinda, novela barroca do alentejano de Aljustrel, Gaspar Pires de Rebelo, impressa a sua primeira parte no ano de 1625. Procuro responder a perplexidades antigas e a dúvidas não resolvidas, que a categoria do “trágico” anunciado no título, na sua relação de causa-efeito, não explicou em tempo devido. Como entender a traição e a condenação à morte de Florinda e Arnaldo, vítimas do ciúme, da violência e da vingança irracional do príncipe Aquilante, desfecho ingrato para duas histórias de constância e fidelidade amorosa? Como entender que um percurso hostil, de desconhecimentos e caprichos da fortuna, chegue a um termo bizarro, aniquilando expectativas justas e adequadas? Uma explicação reside na própria extravagância da história, feita de personagens arriscadas por caminhos demasiado ínvios, a convocar castigos e punições, singularidade que por si mesma parecia exigir desfecho igualmente extravagante. Procuro entender a “ideia”, no sentido mais platónico do termo, que comandou a imaginação do autor e que transformou o equilíbrio cristalino da exemplaridade, capaz de castigar e premiar respectivamente o vício e a virtude, em imagens distorcidas, inquietantes, caóticas, de um poder arbitrário, cego e imprevisível. Mais do que a manifestação dessa invenção artística, a Constante Florinda é expressão vívida da consciência de que nem essa imaginação consegue corresponder cabalmente ao resultado de um poder discricionário, cego, injusto e irracional, não determinado nem nomeado. Ou seja, no fim de contas, não está em causa o poder de qualquer autoridade, do fado ou do destino, sobre os homens, mas sim a “ausência” de poder dos homens sobre as suas acções e o seu destino.

Edição de Nuno Júdice

Foi um exemplo único na ficção romanesca produzida em Portugal em quase dois séculos de literatura… nem o barroco, de poética agitada por furores e imaginações formais e temáticos, onde o disforme e o grotesco se institucionalizaram como formas preferenciais de sátira, ousou desinquietar por mais alguma vez o caos da imprevisibilidade, quedando-se pela aventura exemplar, pela edificação, pela alegoria arrumada e arrumadora de pecados peregrinos.
Ao mesmo tempo releio Tereza Batista cansada de guerra (1972), o meu romance favorito de Jorge Amado, à procura de um motivo que me alentasse a participar, de forma mais veemente, no centenário do nascimento do seu autor, que vai ser lembrado com as mais diversas efemérides por todo o mundo onde se fala português. Comprei o meu exemplar do romance num dos tantos sebos de rua que se estendem pelo cruzamento da avenida Rio Branco, entre o Museu, o Teatro Municipal e a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Limpei-o com cuidado mas continuou com marcas do sol e da chuva desenhadas no papel de um amarelo queimado com letra miudinha. Nada que prejudique a leitura.
Na história de Tereza, menina órfã, vendida pela tia, a um capitão de roça, canalha corrupto, ávido de virgens compradas aos desamparados e aos oportunistas sem pudor, reencontrei o percurso comum da violência e do silêncio temeroso e escondido. Mas foi a descoberta do amor, pela mão inconsequente de um dandy desocupado e cobarde, que provocou a insurreição de Teresa: matou o capitão, foi presa, mas tornou-se livre de uma escravatura de corpo e alma. Da prisão foi levada pelo Dr. Emiliano e durante seis anos conheceu uma relação calma e tranquila, tornou-se mulher, até que o dono de usinas e bancos morreu. Mas Tereza tinha crescido em força e em vontade. Conheceu Janu. Depois disso foi o inevitável desencontro e o desenvolvimento de mais duas histórias de constância e fidelidade amorosa… por entre histórias de prostituição, samba, peste, revoltas, que correm o recôncavo baiano e se centram finalmente em Salvador. Tereza assume o protagonismo nos momentos de perigo, e a virtude, pensada em termos de heroísmo, desta vez é recompensada, cumprindo a ordem natural da sequência esperada entre sofrimento e o respectivo prémio. Quando Tereza já tinha de todo perdido a esperança, eis que Janu volta a Salvador. Para tanto infortúnio sobrou ventura.
Florinda e Tereza representam duas épocas distintas que subitamente revelam um “mundo ao contrário”, mais surpreendente a primeira narrativa se tivermos em conta os códigos orientadores da ficção exemplar. Mas talvez os Infortúnios Trágicos ainda não sejam tão exemplares como O Alívio de Tristes ou a Roda da Fortuna do prolífero Mateus Ribeiro, ou o Serão Político de Frei Lucas de Santa Catarina…
Quanto a Tereza Batista, tal como Gabriela, tal como Tieta do Agreste, tal como Dona Flor, representa uma construção romanesca centrada no protagonismo feminino: vivendo do corpo, Tereza afirmou coragem onde outros fugiram, fidelidade onde outros quebraram, mostrou uma inteireza de alma num mundo fragmentado e marginalizado. O amor de Janu foi a recompensa, a sublimação de uma lógica interna, a sagração de uma virtude tão perigosamente próxima da leitura alegórica e exemplar da narrativa barroca.

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